Uma das vertentes do gênero fantástico é a fantasia urbana, basicamente transportar todas aquelas criaturas e situações que estamos acostumados a encontrar em ambientações conhecidas por medievais, mas que de medieval não existe quase nada, para o tempo presente e geralmente cenários urbanos. Gea brinca com o conceito destes seres mágicos como uma ameaça interdimensional secreta da qual alguns guerreiros precisam tomar conta.
Lançada originalmente como uma maxi-série em 18 partes, Gea é uma criação de Luca Enoch é o primeiro título da editora no qual tanto o roteiro como os desenhos foram feitos pela mesma pessoa. Outra peculiaridade, é que esta série foi publicada pela Sergio Bonelli Editore com uma periodicidade bastante destoante do usual, assim, chegava em banca um novo número a cada seis meses entre os anos de 1999 e 2007, felizmente cada edição também possui mais páginas que normalmente encontramos nas revistas comuns.
Tudo começa com O Baluarte, trama que funciona perfeitamente como introdução, sendo que por vezes até exagera na exposição dos conceitos do cenário. Nela conhecemos Gea e sua vida, tanto a comum onde a acompanhamos indo para a escola e reunindo a banda para os ensaios em casa; quanto seu papel como caçadora de criaturas que atravessaram o Continuum da conjunção dinâmica das múltiplas realidades. Na história seguinte somos levados a um conflito contra Sátiros que vinham sequestrando garotas com fins reprodutivos, e por fim os bons e velhos fantasmas. No entanto, as interações são longe de previsíveis, pois embora Gea carregue uma espada mágica, os confrontos geralmente não exigem violência, ainda que as negociações nem sempre ocorrem de forma amigável.
E assim acompanhamos duas vidas que entram em confronto, em especial em relação ao horário, afinal os dias na Terra possuem apenas 24 horas e não foi feito para matar demônios e estudar trigonometria. Desta forma, de um lado temos uma orientadora pedagógica que pega no pé da protagonista por causa dos pais ausentes (será que eles ainda existem?); colegas de uma banda bastante diversa do ponto de vista sociocultural, mas numa construção natural, como um parceiro baterista paraplégico e seu irmão jogador de hóquei que é gay, ambos poderiam tratar temas mais complexos de auto aceitação, mas eles são bem resolvidos e fogem de estereótipos; de outro lado, além das criaturas fantásticas que a auxiliam de vez em quando, temos até uma espécie atrapalhada de Mulder do Arquivo X, que trabalha no Serviço Secreto e vem caçando o sobrenatural.
Cada núcleo com um elenco independente, mas que certamente devem se encontrar em edições futuras. E para além de personagens bem apresentados, outro elemento cativante está no desenvolvimento das tramas, estas sempre se encontram num tom mais leve, uma mistura bem dosada de ação com humor, mas que toca em questões contemporâneas importantes como imigração, relações humanas, violência, amizade, música, sexualidade, etc.
Também é vale ressaltar algumas influências possíveis de identificar na elaboração de Gea por Luca Enoch, primeiro esteticamente, na qual encontramos traços dos quadrinhos orientais em seu desenho, tanto em relação à composição de personagens, como elementos de linhas de ação ou a utilização de uma cartunização em passagens específicas mais cômicas. Além disso, temos também o clima das aventuras de Gea que transborda a juventude do final da década de 1990, durante a leitura é possível sentir o mesmo ritmo e conflitos adolescentes encontrados séries como Buffy a Caça Vampiros (e seu spin-off Angel), ou mesmo nas histórias da Garota Aranha, May “Day” Parker, lembrando que ambas mostram o ensino médio estadunidense no auge da era do videoclipe.